Etnocolecionismo em imagens: reminiscências e durações ferroviárias no Rio Grande do Sul

Yuri Schönardie Rapkiewicz

Atualmente é produtor cultural, doutorando em Antropologia (PPGA/UFPB) e membro do Grupo de pesquisa Antropologia Visual, Artes, Etnografias e Documentários (AVAEDOC/UFPB). Foi professor substituto no Campus IV da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e no Departamento de Ciências da Saúde no Campus Caxias, Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Possui bacharelado em Ciências Sociais (2014) e mestrado em Antropologia Social (2018), ambos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Coordenou o projeto “Inventários fotográficos e preservação digital de coleções antropológicas na Paraíba e no Rio Grande do Sul” contemplado na Bolsa Funarte de Estímulo à Conservação Fotográfica Solange Zúñiga. Atuou também como Analista (antropólogo) do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA/MG, operando nos projetos de reparação e compensação relacionados à preservação e salvaguarda do patrimônio cultural, executados em decorrência do rompimento da Barragem de Córrego do Feijão, em Brumadinho – MG. Foi coordenador do projeto cultural “Interfaces Arquipélago: memórias, narrativas e museus” realizado em Porto Alegre – RS, entre 2015 e 2020, essa iniciativa resultou na exposição fotográfica e um videodocumentário, construídos colaborativamente com os jovens habitantes ilhéus participantes das oficinas dessa ação cultural. Foi pesquisador colaborador no Núcleo de Antropologia Visual NAVISUAL/PPGAS/IFCH/UFRGS) entre 2011 e 2018, período em que participou de oficinas formativas, organização de eventos acadêmicos, produção, catalogação e curadoria de cerca de 30 exposições etnofotográficas. Realizador de 10 exposições fotográficas individuais e coletivas, também atua na criação audiovisual de cunho documental.

Apresentação: Esta narrativa visual foi originalmente publicada na revista Fotocronografias em 2021, e tem por horizonte temático as reminiscências e durações ferroviárias, agregando imagens da pesquisa antropológica realizada entre 2010 e 2020. A partir da perspectiva da Etnografia da Duração (ROCHA; ECKERT, 2013), as imagens produzidas pelo autor e as fotografias reunidas de acervos públicos e privados compuseram uma coleção etnográfica de memórias do trabalho. Assim, a partir deste conjunto imagético, identificamos fragmentos, lugares e etnocolecionadores (RAPKIEWICZ, 2018) ferroviários no sul do Brasil.

Em Porto Alegre, a paisagem atual do 4º Distrito anuncia um cenário de ruínas e construções abandonadas, decorrentes da desindustrialização da região. Além das fábricas, também foi desativado o sistema de transporte ferroviário, e consequentemente as estações de trem. É neste espaço em que foram realizadas as primeiras saídas a campo, ainda em 2010, percorrendo as ruas e avenidas do bairro Humaitá, observando e registrando o cotidiano deste lugar e o feitio de seus habitantes. Desde as primeiras saídas percebi que algumas moradias locais eram habitadas por operários aposentados e seus descendentes e que os usos das edificações das antigas indústrias eram diversificados. Neste território conheci Hélio Silveira, 78 anos, trabalhador aposentado e morador da vila ferroviária, que foi quem me apresentou o “Ferrinho”. O prédio verde, que havia sido uma agremiação esportiva, é hoje um ponto de cultura comunitário aberto ao público, e localiza-se próximo aos trilhos do metrô. O trem urbano inaugurado em 1985, talvez seja um dos exemplos de presença melhor estabelecida na região, sendo estratégico para a mobilidade de milhares de estudantes e trabalhadores na região metropolitana de Porto Alegre. Em contraponto a esta atividade presente, apresento a Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima. A extinta RFFSA, é cenário narrativo de experiências de trabalho vinculado aos transportes no Rio Grande do Sul. A empresa estatal, que empregava 60 mil indivíduos em 1990, era presente em muitos municípios do Rio Grande do Sul e seu patrimônio incluía maquinários, estações de trem e vilas operárias. Em 1997, após a sua privatização, ficou em aberto a responsabilidade da gestão de seus bens. Assim, entre dúvidas, reutilizações e abandonos, configuraram-se muitos conflitos, sendo instituídas narrativas de “’indignação ferroviária’, isto é, a postura dos/as trabalhadores aposentados e suas famílias (…) perante a crise de sua profissão.” (GÓMEZ, 2019, p. 83). Logo, entre as muitas formas de durar no tempo, foi a partir das coleções e narrativas que muitos dos interlocutores, mediaram suas imagens, comunicando suas “composições de experiências temporais” e seus “desejos de memória”. (RAPKIEWICZ, 2018) Durante minha trajetória de pesquisa adotei a postura metodológica de colecionar imagens da memória do trabalho ferroviário no Rio Grande do Sul. Assim pesquisei fotografias de arquivos diversos, organizando uma nova coleção de imagens de acervo, mas também produzindo minhas próprias imagens fotográficas em campo. Logo, a proposta de compor uma coleção etnográfica e garantir seu acesso ao grande público, através do Museu do Trem, foi uma forma de restituição aos ferroviários aposentados e suas famílias. Estes procedimentos, ao integrar a equipe do Núcleo de Antropologia Visual (NAVISUAL/UFRGS) e aderir a perspectiva da Etnografia da Duração (ROCHA; ECKERT, 2013), balizaram os deslocamentos em campo associados a descrição da biografia de narradores aposentados, colecionadores e militantes do patrimônio cultural ferroviário. Estes interlocutores, que foram confidentes de suas narrativas e histórias de vida, dialogavam a partir do compartilhamento e exibição dos seus arquivos pessoais, recortes de jornal, fotografias de família e objetos da RFFSA. Os encontros etnográficos ocorriam em escritórios ou ambientes rodeados por papéis amarelados e livros, constantemente manipulados pelos aposentados, conforme suas memórias compartilhadas apontassem novas direções e exigissem novos gatilhos narrativos. A segurança pela posse de evidências materiais de um passado marcado pelo exercício da profissão ferroviária e pela valorização deste meio de transporte, induziu ao compartilhamento de memórias afetivas, descritas em causos, crônicas e relatos orais. Além de serem detentores das suas próprias coleções, os ferroviários também eram categóricos em apontar para o Museu do Trem de São Leopoldo como espaço importante na constituição da memória ferroviária do sul do Brasil, frequentando-o sempre que possível. Ao longo deste percurso, me centrei na imagem de interlocutores, que além de trabalhadores aposentados, narradores e colecionadores, eram lideranças de projetos de memória coletiva do grupo. Acompanhar a trajetória de Hélio, guardião do “Ferrinho” e de Paulo Carvalho, um expositor itinerante de 86 anos, aliado ao gesto de colecionar antropologicamente orientado pelos encontros etnográficos, levaram-me a ideia de etnocolecionismo: “uma prática de colecionamento engajado, motivado por finalidades coletivas, de conotação pública e política. Assim, a categoria que pretende horizontalizar a prática do antropólogo colecionador ao dos interlocutores (também colecionadores) emerge enquanto classificação de uma motivação (e negociação) subjacente ao ato de colecionar. Etnocolecionadores, logo, seriam aqueles que compõem narrativas e reúnem materiais temporais, através do acúmulo de experiências, papéis e objetos. (RAPKIEWICZ, 2018, p. 143–144)”. Assim, enquanto antropólogo visual engajado, busquei mobilizar as imagens a partir de um “colecionismo ético” (ABALOS; RAPKIEWICZ, 2019), visibilizando identidades narrativas, reminiscências e durações ferroviárias no Rio Grande do Sul, participando na “efetivação de gestos resilientes” (GÓMEZ, 2019, p. 89) desta comunidade de trabalho.

Ano de produção: 2010 – 2020

Ficha técnica: Fotografias do autor e do acervo do Museu do Trem de São Leopoldo. Referências:

ABALOS JÚNIOR, L. J.; RAPKIEWICZ, Y. S. Práticas de colecionamento e restituição: notas para um colecionismo ético. Ponto Urbe, São Paulo, v. 25, n. 25, p. 1–16, dezembro, 2019.

GÓMEZ, G. S. R. A Indignação ferroviária: Envelhecimento e Trabalho em Pelotas/RS. Iluminuras, Porto Alegre, v. 20, n. 49, p. 83–121, maio, 2019.

RAPKIEWICZ, Y. S. Cidades, patrimônios e etnocolecionadores: uma etnografia das reminiscências ferroviárias no sul do Brasil. Dissertação de Mestrado, Departamento de Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2018.

ROCHA, A. L. C.; ECKERT, C. Etnografia da duração. Porto Alegre: Marcavisual, 2013.

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